[Relato 30]

Comecei a odiar meu corpo quando eu tinha doze anos. Comia pizzas inteiras, pacotes e pacotes de bolachas, pães, doces, refrigerantes, chocolates, sorvetes, tudo de uma vez só e, em seguida, jogava tudo fora com um dedo na minha garganta. Sou bulímica até hoje, quatorze anos depois. Até hoje a cicatriz do que aconteceu, o tanto de tempo guardando desespero em forma de segredo, me sufoca e empurra para fora de mim angústias, culpa, medo e decepções em forma de comida mal digerida.

Foi aos nove que ela chamou, a mim e meu irmão mais novo, para o quarto. Eu sempre fui uma criança feliz, guardo muitas memórias boas da minha infância e considero essa a fase mais feliz da minha vida. Foi aqui que nasceu o meu porém. Essa experiência abriu as portas para que a bulimia servisse como válvula de escape para outros problemas e frustrações. Também abriu as portas para uma constante rejeição de quem eu sou, de como me formei. Por três vezes, durante minha vida, desenvolvi anorexia. Era só perceber meu corpo tomando forma, se tornando adulto, que imaginar que alguém poderia ter atração por mim me provocava nojo, repulsa. Eu queria ser pequena, frágil, invisível. Pesei quarenta e cinco quilos medindo um metro e sessenta e cinco de altura. Perdia a memória, não menstruava, quase fiquei careca e perdi a voz. Meu corpo era o pior lugar do mundo e eu estava constantemente nele.

A vizinha tinha uns quinze anos. Disse que faríamos algo divertido, normal onde ela morava antes. Meu irmão tinha cinco anos e ela fazia com que ele tocasse meu corpo e fizesse sexo oral em nós duas. Eu não entendia, mas me sentia mal. Tinha raiva, tinha vontade de bater nos dois. Essa violência aconteceu pelo menos duas vezes, se mais, minha memória piedosamente não permite que eu acesse. Ela se mudou, deixando a culpa que sinto até hoje por não ter protegido meu irmão. Deixando ranço e nojo. Deixando marcas e cicatrizes e um longo trabalho de auto-aceitação a ser feito.

Minha história começou cedo e destruiu parte da minha infância, toda minha adolescência, meus relacionamentos e até minha vida acadêmica. Ela pode não parecer tão ruim, pode não ser a pior história que você ouviu, mas ela serve para mostrar que mesmo ações que você consideraria tão prejudiciais tem um impacto profundo na vida das pessoas. Faz dois anos que comecei um processo de cura que tem me feito muito bem. Passei a vida inteira sob a sombra dessas marcas e cicatrizes e é libertador viver sem elas. É um processo longo, que eu não gostaria de ter passado, mas espero que um dia todos nós possamos superar nossos traumas.

 Relato de uma leitora anônima, reescrito por Lucas Kodiak.

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